Pandemia – entre a covardia e a perversão
Por Ale Esclapes¹
Durante muito tempo relutei em escrever um artigo sobre a pandemia. O maior temor era de ser alvo de reações fanáticas, pois pandemia e política estando intimamente ligadas, formam uma mistura muito perigosa.
Política não tem lá muito compromisso com a verdade – essa foi umas poucas coisas verdadeiras ditas por Donald Trump. Mas chega uma hora que medo se torna omissão e covardia, se é que já não o tenha se tornado. Vou buscar o vértice mais psicanalítico possível para o que vou enunciar, já tendo em vista o meu fracasso.
Bion nos lega a noção de aparelho pré-conceptual, onde uma pré-concepção (expectativa) busca no mundo uma realização (sentido inglês do termo, em que algum fato do mundo pode ser uma realização possível para uma expectativa) gerando em caso de uma realização positiva uma concepção ou negativa um conceito. Dito de forma mais simples, podemos dizer que para a pré-concepção fome, uma realização possível seria um prato de macarrão, gerando a concepção “macarrão satisfaz a fome”. Essa concepção por sua vez gera uma nova pré-concepção. Quando da fome teríamos uma expectativa de um prato de macarrão.
Pois bem, vamos aplicar esse esquema simples para entendermos uma situação muito peculiar quando já estamos perto de 300.000 mortos por complicações causadas pela COVID 19. Como entender as pré-concepções (expectativas) que nosso Presidente da República vai mudar sua postura sobre o enfrentamento da pandemia, que o Ministério da Saúde vai fazer algo diferente do que já fez, etc? Se nada mudou com 200 mil mortos, como imaginar que algo vai mudar com 300 ou 400 mil mortos? Essa expectativa não encontra nenhuma fundamentação nos fatos. Não existem realizações possíveis que possam garantir essa pré-concepção.
Pode-se dizer o que quiser acerca do Presidente da República, menos que ele tenha enganado alguém nas eleições de 2018. Sempre foi um político medíocre (dois projetos aprovados em 27 anos de legislatura), declarou que não entendia nada de economia, e que se saiba não se envolveu com pautas sobre saúde. Ou seja, está sendo muito coerente com sua biografia. Ele não enganou ninguém!
O que faz, portanto, a mídia e os agentes políticos nas três esferas da República acreditarem que algo vai mudar? Dario Sor no livro “Cambio Catastrófico” nos dá uma dica: a resistência não está em assumir os fatos, mas as implicâncias a que levam os fatos. Se assumirmos que o Presidente da República bem como Executivo não tem condições de nos guiar no meio de uma pandemia global, onde essa constatação nos levaria? No momento atual, ninguém quer se responsabilizar por essas consequências. Surgem a partir daí as mais diversas análises políticas por parte da imprensa que não levam em consideração os fatos*. O judiciário e o Ministério Publico tampouco dão conta dos inúmeros crimes que podem ter sido cometidos pela atual gestão da pandemia – é como se eles não existissem. Os fatos estão aí, mas se acovarda diante de suas implicâncias.
Soma-se a isso um toque de perversidade: as autoridades não parecem muito preocupadas com as vidas perdidas e sim consigo mesmas. Exemplo é a notícia** que o Procurador da República, desejando agradar a bancada das igrejas no Congresso Nacional, visando ser indicado para uma vaga no Supremo, é a favor da abertura das igrejas durante a pandemia (como se o vírus tivesse religião). A elite econômica por sua vez sequer alega ignorância – sabe de tudo isso e simplesmente despreza os fatos. O único que importa é o comércio aberto*** e a liberdade do vírus de ir e vir.
Existe uma diferença entre a falsidade e a mentira. Uma pessoa que enuncia uma falsidade não tem consciência dela. Aqui entra a psicanálise – não se vê por que é conveniente que não se veja. Se torna inconsciente o que não se suporta na consciência, pois os fatos estão aí. No caso da mentira, quem a enuncia sabe o que está fazendo – o que exige muito esforço. Eu não saberia dizer o quanto a mídia, os agentes políticos e econômicos e as pessoas em geral estão enunciando mentiras ou falsidades. No caso da mentira, estaríamos diante de pura perversidade sendo exercida sobre os vivos e os mortos. Na falsidade, estaríamos diante da covardia em não assumir as implicâncias dos fatos. Covardia e perversão nos levam a um círculo vicioso que, hoje (21/03/2021), matam cerca de 2200 pessoas por dia.
*https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-uniao-nacional-contra-a-pandemia-so-funciona-com-uma-premissa-isolar-bolsonaro,70003654841 no caso específico dessa análise, não se leva em consideração que é impossível isolar o Presidente da República, a não ser que se esteja sugerindo um "impeachment".
***https://congressoemfoco.uol.com.br/saude/igreja-culto-onibus-sao-paulo/ que ninguém se engane que esse tipo de igreja se trata de um comércio como outro qualquer, ou na melhor das hipóteses, uma loteria.
¹Psicanalista, professor, escritor e diretor da Escola Paulista de Psicanálise-EPP e do Instituto Melanie Klein-IMK. Autor do Livro "A pobreza do Analista e outros trabalhos 1997-2015" e organizador da Coleção Transformações & Invariâncias.
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