Dica de Filme: Titane

Por Ale Esclapes¹

Direção: Julia Ducournau / Atores: Levan Gelbakhiani (Merab), Bachi Valischvili (Irakli), Ana Javakishvili (Mary) Plataforma: MUBI

Em carta de Freud à Andreas Salomé ele nos ensina que ao conduzirmos uma análise, “é preciso emitir um facho de intensa escuridão de modo que algo que até então tenha ficado obscurecido pelo resplendor da iluminação possa cintilar ainda mais na escuridão”. Com isso em mente passo a um breve resumo e uma extensa lista de temas que brilham em “Titane”, mas que escolho não pensar nesse momento. O filme é a história de uma assassina (que a psiquiatria chamaria de psicopata) chamada Alexia, que transa com um carro, engravida dele e que, quando descoberta pelos seus crimes, foge e é “confundida” com o filho (Adrien) desaparecido de um chefe de bombeiros (Vincent) há dez anos. A lista de temas que deixo de fora são: a violência do início do filme; o fato de Alexia ter matado seu pai; de transar com um carro e depois parir filho; bem ... a lista é extensa.

No que quero me concentrar é no personagem Vincent, que tem seu filho Adrien desaparecido há mais de dez anos, e que reconhece Alexia em uma delegacia como sendo seu filho, e que a despeito de todos os sinais que a realidade lhe dá, segue afirmando que Alexia é Adrien. Ele a leva para fazer parte do grupo de bombeiros no qual é o chefe. Mesmo quando descobre que aquele que ele trouxe para casa como sendo seu filho, tem um corpo feminino e está grávida de uns 8 meses, não o retira do lugar de seu filho que retorna à casa. É dessa violenta experiência emocional que quero me ater.

A mãe de Adrien se dá conta facilmente da situação delirante de Vincent e pergunta diretamente a Alexia/Adrien: “E se você fosse eu? Se não pudesse chorar seu filho, o que faria?”. Imagino (que é tudo que posso nesse contexto) que a expectativa de encontrar o filho perdido seja proporcional a dor do sentimento de perda, e uma vez que Vincent “encontra” Adrien, a perspectiva de viver novamente essa dor seja insuportável, e entra em cena uma forte negação da realidade, e mesmo diante de todas as evidências de realidade, Adrien continua ali.

Vincent pode negar para si a realidade, mas vai ficando muito difícil o grupo de bombeiros negar junto. Quando essa situação grupal vai se tornando insuportável, vai se criando as condições para que Vincent se dê conta emocionalmente do que se passa. Nessa hora nasce o filho de Alexia, e o resto fica em aberto. Vicent sai do seu delírio? O filho de Alexia ocupa o lugar de Adrien?

Voltando à recomendação de Freud, e quando emitimos um facho de intensa escuridão no filme, a violência da experiência emocional da perda de um filho e suas implicâncias podem vir para o primeiro plano. Uma leitura possível é que a violência da experiência de perda é transposta no filme como uma violência aparente que esconde uma outra. Uma pena que alguns expectadores tenham abandonado as salas de cinema nas exibições nos festivais pelo mundo: qual será a violência que os fizeram sair de suas zonas de conforto? A explícita ou a implícita, a manifesta ou a latente?

E você, conseguiu ver o filme até o fim? O que achou? Deixe aí o seu comentário.

¹Psicanalista, professor, escritor e diretor da Escola Paulista de Psicanálise-EPP e do Instituto Ékatus de Psicanálise. Autor do Livro "A pobreza do Analista e outros trabalhos 1997-2015" e organizador da Coleção Transformações & Invariâncias.

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